Vozes de luz

Meus caros amigos

 

 

Há já muito tempo que não passo por cá a deixar uma mensagem. Noutro dia, recordando uma das primeiras conversas que tive com o Tio Bessa (agora já avô – e babado), ele retransmitiu-me uma frase, de um autor que já não me recordo, mas uma frase que muito me marcou:

 

 

A fala é a única coisa que nos diferencia de todos os animais

 

 

De facto, a linguagem não é exclusividade nossa. As baleias, os golfinhos e mesmos alguns símios, comunicam-se e de forma a transmitir um código inteligível. Experiências recentes até já tornaram possível que algumas espécies de símios, devidamente treinadas, se comuniquem com seus instrutores, de forma intencional.

 

 

Mas a fala, meus amigos, essa é a grande diferença!

 

 

Depois de 5 anos a trabalhar tão intensa e proximamente de pacientes portadores de uma malformação congênita que lhes compromete a fala, achei que era chegado o momento de expressar aqui, o meu reconhecimento. Poderia agradecer aos cirurgiões que reconstroem estruturas onde nunca existiram, ortodontistas que contribuem para que o orgão se desenvolva adequadamente, para todas e cada uma das batalhas, e até mesmo, no topo deste tema, às terapeutas da fala, que mercê de um saber enorme, só comparável ao querer que as impele e motiva. Mas não venho aqui falar de nenhum destes importantes batalhões que compõem a força de combate. Venho aqui falar dos verdadeiros heróis. Venho aqui, hoje, na humilde qualidade de colaborador e incansável admirador, falar das vozes de luz.

 

 

Quando minha primeira filha balbuciou o primeiro “papá”, pensei que nunca mais voltaria a sentir aquela emoção. Quando nasceu minha segunda filha, e soltou o primeiro “papá”, recordei a minha afirmação e percebi imediatamente quão errado estava. Voltei a viver a mesma sensação. Só nesse dia, me apercebi, que afinal, era a terceira vez que sentia essa sensação! A minha afilhada, que tardava uma eternidade a dizer suas primeiras palavras, foi pela minha persistência e determinação, que antes de dizer mamã, começou com uns tímidos titi-titi-titi. Eu sei que a minha irmã jamais irá admitir, mas a verdade é que ela queria dizer titio, mesmo antes de dizer mamã! (aqui rio-me a gargalhada de pensar na cara da minha irmã a ler este post).

 

 

Todas essas experiências marcaram a minha vida, de uma maneira singular. Cada um destes momentos, foi mágico à sua maneira. Todos intensos. E foi por me lembrar disso, que percebi como se fez luz na minha vida, perceber que aqueles seres pequeninos, estavam de verdade a começar a sua jornada. A começar a sua comunicação com o mundo. Com o meu mundo. Compreendo ser demasiado iluminismo, atribuir a esse momento um tão grande sentimento. Mas é facto que assim o foi.

 

 

As vozes daquelas três, ao longo destes dezoito anos, tem me oferecido momentos de valor inestimável.

 

 

Por tudo isso, tornou-se cada dia mais importante, poder participar neste projecto da APFP. Fazer parte da Consulta de Grupo de Fendas Lábio-palatinas, fez-me já reviver muitas vezes essas emoções. Mas de uma forma muito especial.

 

 

Na verdade, muitos dos pacientes que são acometidos por esta malformação congênita, terão para sempre uma sequela na sua fala. Uma sequela que os caracterizará para sempre. Mas não houve um só dia, um só destes heróis anônimos, que desistisse do seu objectivo de falar. Alguns destes seres, debatem-se com tamanha dificuldade em produzir sons perceptíveis aos que os cercam, que só pode ser um exemplo de força e coragem, determinação e superação.

 

 

Algumas vezes, cheguei a encontrá-los quase sem forças para enfrentar o périplo de intervenções que os segue ao longo da vida. Mas nunca os encontrei silenciados pela derrota.

 

Lágrimas e dores, apenas bordaram os sorrisos e alegrias de cada vitória em cada etapa.

 

 

Uma vez, houve uma pequena que pediu-me por carta, um sorriso inteiro. Transmitiu-me com os seu olhar ingênuo e forte o seu temor, ante o obstáculo de mais uma cirurgia. Mas foi com palavras que me abraçou com a sabedoria de uma criança e disse: “Eu confio em vocês”.

 

 

Esta é a grande marca. Essa é a razão de nos mobilizarmos. Somos os vectores de tantos sonhos e catalizadores de tantas emoções, que marcam a vida de todas e cada uma destas crianças, jovens e adultos, que nos procuram. Essa é a dimensão da nossa responsabilidade.

 

 

Uma dessas pessoas, disse-me que precisava ter condição de falar, pois disto dependeria sua capacidade de lutar por um lugar ao sol, profissionalmente. Adulta, já com sequelas graves de um acompanhamento menos especializado ao longo de muitos anos, e uma hipernasalidade que destruia quase completamente a construção das palavras que persiste em pronunciar, como pode. Aquando do nosso primeiro encontro, não tinhamos nenhuma ideia sobre como poder ajudá-la. Mas o esforço realizado na pronuncia do pedido, o impacto daquele ser a pedir-nos ajuda, a fazer-nos confrontar com as nossas limitações, não poderia ficar sem resposta.

 

 

Voltamos à pesquisa. Aos estudos. Aos livros e às publicações especializadas de todos os quadrantes do planeta. Passados dois anos, o nosso grupo, encontrou maneira de reduzir, minimizar e por vezes até, eliminar esse obstáculo. A oferta de outras opções técnicas, como as próteses obturadoras do palato, virão dar ao nosso grupo, mais uma importante contribuição para dar voz a quem quer falar.

 

 

Pese embora não ser original, é verdade que não dá prá mudar o começo. Mas certamente vamos reescrever o final desta história.

 

 

It´s gonna be a bright and sunshiny day!

 

 

Todo o nosso esforço é para honrar estes heróis, que nos dão a oportunidade de desfrutar do seu exemplo. Vocês todos, merecem o meu reconhecimento e a minha admiração.

 

Por favor, continuem a iluminar-nos com as vozes que vem das vossas almas.

 

Bem hajam!

 

 

Rowney Furfuro